quinta-feira, 23 de maio de 2013

Da lixeira da cozinha até a lixeira pública: o caminho que o lixo doméstico percorre até a destinação final


Foto: Gabriel Penha
Jogou alguma coisa no lixo e depois se arrependeu? Não se desespere, objetos jogados no lixo sem querer não estão perdidos para sempre. É possível recuperá-los. Mas para isso é preciso percorrer um longo caminho. 

            Depois de ouvir vários relatos de amigos contando como perderam objetos que foram parar, sem querer, no lixo, e que mesmo tentando não conseguiram recuperá-los, resolvi que isso seria uma boa pauta para fazer uma investigação jornalística. Não sou fã do jornalismo investigativo. Acho-o um risco de vida, embora na profissão de jornalista não se tem muita escolha. Mas avaliei que seguir as pistas dos resíduos sólidos, é assim que o lixo é chamado, não traria nenhum risco. Talvez, o biológico. Então decidi “perder”, por vontade própria, alguns “documentos importantes” e segui-los para verificar qual o caminho que o lixo percorre, desde a lixeira de nossa casa até o seu destino final e se é possível recuperá-lo.
            Na manhã de uma segunda-feira de verão, coloquei alguns papeis e revistas velhas em uma sacola plástica de cor azul, para diferenciar das milhares de sacolas brancas e amarelas, que reaproveitamos para acondicionar o lixo depois que elas embalam nossas compras no supermercado. Saco de lixo pronto, coloquei-o junto com os outros sacos que já estavam na lixeira em forma de jance de carro que fica na calçada, com tampa e em uma altura suficiente para que os cachorros e urubus não espalhem tudo pela rua. E esperei.
Sei que o carro do lixo passa às segundas, quartas e sextas-feiras na rua de casa, sempre pela manhã. Mas não tem um horário certo. O jeito é esperar.
Às sete e meia passou o primeiro gari juntando em um só lugar na rua o lixo de todas as casas. Deve ser para facilitar o trabalho, mas como o carro que recolhe o lixo demora a passar, os cachorros e urubus fazem a festa, espalhando pela rua latas, caixas, restos de comida e outras coisas que eu não quero nem saber o que é. Depois de mais ou menos meia-hora, o carro passou e os garis só levaram o que ficou nos sacos inteiros, deixando pra trás um rastro de sujeira pela rua.
Esperei uns 20 minutos e saí atrás do caminhão do lixo. Iria tentar resgatar os “documentos” que foram parar no lixo por engano, antes de chegar na lixeira pública. Consegui alcançar o veículo bem longe de casa. Como ele é rápido!
Falei com o motorista, contei que tinha colocado uns papeis no lixo por engano e ele me disse que era impossível achar a sacola dentro do depósito do carro. Foi aí que descobri que o mecanismo do caminhão não destrói as embalagens e sim apenas compacta. Não me dei por vencida. Perguntei pra onde ele levava aquele lixo todo. Ele respondeu que ia levar pra Lixeira Pública Municipal.
A Lixeira Pública Municipal fica no km 14 da Rodovia BR 210. Não sabia a que horas o caminhão ia chegar por lá, assim segui para o lugar sem muita pressa de chegar.
Ao chegar à Lixeira fui recebida por um senhor de nome Otávio Moraes, que controla a entrada e a saída de pessoas e veículos. Depois de ouvir a minha história, foi logo me avisando: “Aqui só entra com autorização!” Pedi pelo amor de Deus, de todos os santos e anjos, disse que os papeis eram muito importantes. Enfim, consegui convencê-lo a me deixar entrar. Perguntou-me qual era o número do carro do lixo que passava na minha casa. “Não sei”, respondi. E completei no pensamento: “Eu vou lá me preocupar em saber o número do carro do lixo que passa na rua da minha casa. Eu sei a senha do cartão de crédito, do cartão do banco, do e-mail, enfim, são muitos números para saber de cor, não dá pra decorar mais o do número do carro do lixo”. Ele perguntou então o meu endereço e me informou qual era o número do caminhão.
Entrei na Lixeira Pública. Estacionei o carro e ao longe avistei várias pessoas circulando entre milhares de sacolas de lixo que estavam depositadas em uma área próxima a uma grande cratera. Deduzi que era ali que os carros derramavam o lixo quando chegavam ao local. Fui me aproximando devagar. O lugar tinha tanta mosca que à medida que eu caminhava elas abriam um caminho para eu passar como se fosse uma passarela. E o urubus? Eram tantos e pareciam disputar o lixo com os carapirás.
Esses eram especiais, os carapirás, pessoas simples que passam a vida inteira catando lixo. Criam filhos, sustentam a família, sobrevivem do lixo. E são cheios de histórias pra contar. Conversei com eles e contei-lhes a minha história. Eles me aconselharam a falar com o motorista para que ele espalhasse o lixo em vários lugares e não somente em um lugar formando uma montanha, isso dificultaria localizar a minha sacola azul.
Enquanto esperava o caminhão, comecei a conversar com algumas pessoas. Cleide Souza, de 34 anos, três filhos, vem todos os dias catar lixo na Lixeira Pública.”Aqui nós encontramos de tudo. O material escolar dos meus filhos eu junto aqui. É impressionante como as pessoas jogam fora coisas que ainda dá pra se aproveitar”, diz a carapirá. Seu José Lins de Moura, 77 anos, já perdeu a conta do tempo que cata lixo. “Já encontrei relógios, anel, roupas, sapatos e até dinheiro”, afirma o senhor, com as mãos enrugadas e as costas encurvadas pelo tempo que já passou catando lixo.
Já passava do meio-dia, e o sol estava a pino. Suava por todos os poros e nada do caminhão chegar. Uma senhora que aparentava uns 40 anos, de nome Clarice, veio me convidar para o almoço. “Almoço? Aqui nesse lugar?” Pensei. “Venha comer um peixe com a gente”, chamou a mulher. Não, obrigada. Agradeci. Imagina a higiene daquele local. E ainda mais, peixe é um chamariz de moscas. Definitivamente, não.
Finalmente, o caminhão do lixo que passa na minha rua, o de número 46, chegou. Falei com o motorista, que ficou surpreso de me ver ali. Ele então jogou o lixo espalhando por vários lugares. Os carapirás rapidamente começaram a procurar a sacola azul com meus documentos. Eles estavam tão ávidos em encontrar o meu lixo, que acho que eles estavam desconfiando que não eram bem documentos que eu estava atrás, e sim alguma coisa mais valiosa.
Eram muitas sacolas, caixas, todas sujas e amassadas. Seria difícil de achar. Também comecei a procurar e nada da sacola azul. Alguns carapirás usavam umas varas com prego na ponta para remexer as embalagens. A maioria não usava nenhum tipo de proteção, luvas ou botas. De repente vi um senhor remexendo uma sacola azul e corri até ele. Realmente, reconheci a sacola e peguei-a do chão. Estavam lá todos os papeis e revistas que tinha colocado.
Fiquei surpresa de ter conseguido resgatar os meus documentos. Nem eu mesma acreditava que isso fosse possível. E ainda por cima tive a oportunidade de ver in loco a vida que gira em torno do lixo. E como o ser humano produz lixo. São toneladas e toneladas que são depositadas nas lixeiras públicas, diariamente. É preciso urgente repensar a questão da diminuição do consumo e o aumento da reciclagem, pois na direção que estamos indo, iremos todos parar em uma grande lixeira mundial. 



Por Elisabete Ramos, acadêmica do curso de Jornalismo/Unifap, turma 2011.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Boca do inferno

A brava luta dos pescadores contra os perigos do mar na busca da sobrevivência


Por Paulino Barbosa
(aluno do curso de Jornalismo da UNIFAP)


N
a vida, sempre passamos por alguns “mal bocados”. E quem é jornalista sabe muito bem do que falo. Situações que testam o nosso limite físico e psicológico. Aventuras que nos colocam entre a vida e a morte. São desafios constantes para quem um dia ousou escolher essa profissão. Mas, se não fosse assim, que graça teria o nosso trabalho? E depois, como diz o ditado, uma pessoa só “bate as botas” quando chega a sua hora. E este repórter é a prova disso.
Era mais uma pescaria na vida daqueles três “peões do mar”. O cabeludo, o Camisudo e o Seu Mané. Sei que é engraçado, mas esses não são os seus nomes verdadeiros. Mas também não faz muita diferença eu citá-los aqui, quase ninguém sabe. O cabeludo, o mais vivido e esperto da turma era o líder e mentor da viagem. Ganhou este apelido ainda guri porque tinha uma cabeleireira farta.  O Camisudo tem a mania de usar a camisa por fora da calça quando está porre, daí o seu apelido. Já o Seu Mané, tem este segundo nome por conta da sua lentidão e distração. E eu, bem eu não tenho apelido, não que eu saiba, mas estava ali, como um abutre farejando carniça, querendo uma boa história para contar. E aquela aventura poderia ser a pauta certa que eu tanto procurava. Não pensei duas vezes, entrei no barco e saímos. Nosso destino, as costas do Bailique. Eu tinha que passar cinco dias com aqueles caboclos, no meio do Oceano Atlântico, vivendo literalmente uma vida de pescador.
Nem bem saímos da calmaria dos rios, demos de cara com uma grande tempestade. Algo fora do comum, um verdadeiro inferno. Coisas da natureza que não podemos impedir, apenas enfrentar e tentar sobreviver. A tempestade veio carregada de vento e chuva fortes. Uma escuridão apagou o dia, não enxergávamos quase nada à nossa volta. Estávamos literalmente e realmente nas trevas! O nosso barco, como um barquinho de papel, daqueles que brincamos quando criança, submergia quase por completo nos meios das ondas gigantescas. Era preciso muita força nos braços para nos manter agarrados no barco. A chuva arremessava aqueles jatos de água parecendo pedras sendo atiradas contra o nosso rosto. Eu não conseguia abrir sequer os olhos para olhar o que estava acontecendo. As ondas surgiam de repente à nossa frente e levantavam o nosso barco por cerca de três metros de altura que depois se chocava contra a água do mar. O impacto era tão forte que parecia que tudo ia se arrebentar dentro da gente. Ainda bem que ninguém estava com diarreia. A única coisa que eu conseguia dizer era “ai meu deus!”. Essa é a hora que todo mundo se lembra dele. E naquelas circunstâncias só um milagre poderia nos tirar daquele inferno. Tive vontade de gritar pela minha mãe.
Pensei em pular na água e abandonar o barco, mas não conseguia enxergar a margem. Comecei a rezar e a fazer promessas pra todos os santos que conheço. Acho que até agora ainda estou em débito com algum. Ficamos nessa situação por cerca de uma hora, o barco não andava nada, pois a força da maresia nos impedia de avançar. Ficava imaginando “... se der um problema no motor ou na direção estaremos fudidos”.
Passado aquele sufoco, o vento foi se acalmando e a paisagem à nossa volta foi clareando. Estávamos livres! Tentei soltar meus dedos da vista do barco, mas não conseguia. Estavam duros. Só depois de alguns minutos consegui movimentá-los e trazer os meus dedos de volta. A força que fiz para me manter dentro do barco fez com que o sangue parasse de circular. Por pouco não perdi meus dedos.
Depois da tempestade, o Cabeludo me falava que eu estava batizado pelo mar e que então poderia ser um pescador também. Me benzi e bati na madeira.Tomara que eu nunca precise dessa porra de profissão para sobreviver.  Aquilo não é vida para um cidadão normal, como eu. Ele disse que esse momento, pelo qual passamos, é rotina na vida de um pescador. Para os novatos, era um teste de resistência e de adaptação. Ou seja, é o momento de separar os adultos das crianças. Ele diz que muitas pessoas passam mal e até se cagam, tanto por cima quanto por baixo, por causa do medo. Ainda bem que não aconteceu isso comigo. Mas também, se tivesse acontecido, não relataria aqui. É muita humilhação admitir tal mico! Aí sim eu ganharia um apelido e uma marca para o resto da vida.
Eu estava em estado de choque, não conseguia nem falar. Foi preciso algumas horas para me recuperar. Na verdade acho que até hoje ainda não me recuperei por completo. Em poucos minutos aquela euforia inicial de aventura se foi. E no seu lugar ficou o medo, o pesadelo. Não dá para imaginar como é a vida real de um pescador a não ser que você viva esta realidade. Falo isso porque sou acostumado a assistir aquela série do Discovery Chanel chamada “Pesca Mortal” e que, por isso, achava que estava pronto para aquela aventura. Puro engano! A realidade é bem diferente do que imaginamos.
Já batizado pelo mar e sobrevivido, continuamos nossa viagem e uma hora depois estávamos ancorados na Ponta do Bailique, prontos para a pescaria, ou melhor, quase prontos. Eu só queria voltar pra casa e sentir terra firme nos pés.
Naquele mar, com o barco jogando o tempo todo, o nosso estômago fica a todo instante querendo expulsar o rango. Sem contar que nesta situação, comer é uma batalha. Jogar farinha na boca é quase impossível por causa do vento que leva tudo da colher. O jeito é recorrer ao pirão. Banheiro e papel higiênico, nem pensar. As necessidades são feitas ali mesmo, pendurado do lado do barco. E quando você termina é só se jogar no mar e já vem com o corpo todo lavado.
A rotina de pescador é muito agitada, bastante sofrida e solitária. Pesca-se o tempo todo, seja noite ou seja dia, faça chuva ou faça sol. Quase não se tem tempo para descansar ou pensar em solidão. Os pescadores quase sempre dormem em cima das estivas de tábuas, comem junto dos peixes.
Na maré alta, põe-se as redes na água para pescar e quando a água vai secando é hora de tirar os peixes. Alguns são lavados e vão para as cubas de gelo, outros são lanhados para serem salgados. Apesar de ser uma das profissões mais antigas do planeta, muito bem descrita na bíblia, a tecnologia ainda não chegou para muitos pescadores. Ainda se pesca artesanalmente, usando as mesmas técnicas e equipamentos do “tempo do cu quadrado”. Para se ter ideia, no nosso barco a única fonte de energia eram as lanternas. Por isso, nosso jantar tinha que ser antes do dia escurecer para que nenhuma espinha de peixe ficasse entalada em nossas gargantas. Num dos raros momentos de descanso, à noite, poderíamos contemplar as estrelas no céu, contar algumas piadas ou simplesmente jogar conversa fora. É nessas horas que deve bater a saudade da família, da esposa, dos filhos. A nossa pescaria era apenas para o nosso consumo e a previsão era de que ficaríamos por cerca de cinco dias no mar. O Cabeludo nos contou que os pescadores profissionais chegam a ficar até mês inteiro pescando. Ele disse que eles pescam a quilômetros da costa, onde só se vê o mar. Fiquei pensando, tanto tempo no mar, deve ser a explicação para que muitos pescadores tenham filhos com a cara do vizinho, louros e até de olhos azuis.
Brincadeira ou verdade, é de se admitir que o pescador fica, a todo momento, exposto à ação do tempo. Parece mais uma extensão da própria natureza. Nos dias de sol quente, apenas a roupa, o boné ou o chapéu de palha os protegem. No fim do dia a pele está queimada e dolorida, os nossos olhos estão que nem pimenta de tão ardidos por causa da ação do vento.
No meio da noite é preciso sair para colocar as redes na água. Temos que molhar o “bago” para fazer esse trabalho. Não podemos amanhecer dormindo, pois temos que despescar as redes antes que os animais façam isso por nós. Agora entendo porque os pescadores tem a fama de cachaceiros e tabaqueiros. Não dá para enfrentar aquela rotina sem umas doses de álcool correndo pelas veias ou sem um grande “porronca” na boca para assustar os maruins.
O nosso banho é feito no mar ou quando a água está seca, nas poças que ficam em cima da praia. A água é tão barrenta que temos a sensação que ao se banhar ficamos ainda mais sujos. Quando a pele seca é possível escrever um texto com as unhas.
No período que compreende os meses de janeiro a abril, muitas espécies de peixes entram no período de piracema. Nesses meses é proibido pescar. Para sustentar suas famílias, os pescadores dependem do seguro de pesca pago pelo Governo Federal. São quatro parcelas no valor de um salário mínimo. É um dos raros momentos em que eles deixam o mar e rumam para a cidade. São facilmente encontrados, desde a madrugada, nas famosas filas da Caixa Econômica Federal.
Essa é a vida de um pescador profissional do Bailique, uma vida sofrida e em constante briga com o mar. A renda depende muito da sua produção. De toda forma, nunca conheci nenhum pescador que tenha ficado rico. E quase sempre, todos que começaram pescando, geralmente morreram pescadores. A vida de pescador é tão lascada que quase nenhum pescador deseja que seus filhos sigam a profissão. Portanto, quando você for à feira e reclamar do preço do pescado, pense no sacrifício que os pescadores enfrentam para trazer o peixe até a sua mesa. Pode não ser o inferno, mas provavelmente seja a boca dele.

domingo, 5 de maio de 2013

A mulher que tentou brincar no Baile de Máscaras da Festa de São Tiago

Max Gabriel Penha
aluno do curso de Jornalismo da UNIFAP

 
O Baile de Máscaras é uma atração à parte para quem prestigia a Festa de São Tiago, em Mazagão Velho, seja como visitante ou como jornalista, pesquisador ou coisa que o valha. Trata-se de um ritual, que acontece na noite de 24 de julho, parte de uma tradição no enredo da festa do Santo, que reconta, através de teatro a céu aberto, a guerra entre mouros e cristãos na África, no século 18.
O baile, que acontece no barraco, é a representação cênica de uma comemoração feita pelos mouros, que na véspera haviam oferecido comida envenenada aos cristãos – essa “Entrega dos Presentes” também é encenada na tarde de 24 de julho. E, usando máscaras, os soldados cristãos poderiam mudar de lado, sem serem reconhecido por seus oficiais. Mas, foram à festa para servir a comida com veneno aos inimigos. Uma tradição reproduzida há mais de dois séculos e três décadas. É impossível não se contagiar com o clima do baile, ainda mais quando se acompanha seus bastidores.
A casa do fabricante das “caraças”
Minha missão era mostrar todo esse episódio da Festa de São Tiago. A primeira parada, acompanhado do repórter-fotográfico Amilton Matsunaga, na tarde do dia 24, foi na casa do seu Elisardo Silveira, conhecido fabricante de máscaras tradicionais, feitas à base de papel (jorna velho) e goma, as chamadas “caraças”. “Olha, no meu tempo, no tempo do meu pai, dos meus avós, sempre foi assim. Não tinha máscaras de borracha, essas industrializadas. É uma tradição que não pode morrer”, defendeu, ao falar da fabricação das máscaras para aquela noite.
“Mais tarde, farei a distribuição e os rapazes vão para o Baile de Máscaras, que vai até de manhã”, explica ainda seu Elisardo. O repórter-fotográfico Amilton Matsunaga faz a primeira pergunta parecendo adivinhar o que aconteceria mais tarde: “Só os rapazes, e as mulheres, não ganham máscaras?”, perguntou o Japa. “Não podem nem entrar no baile. Na época, as mulheres não iam para a guerra”, retrucou o mazaganense, com cara de quem pensa: “Esse porra vem para cá e nem procura se informar das coisas...”. Mal sabia eu o quanto isso iria atiçar a curiosidade do nipônico.
Enfim, a malhação de Judas
Vendo que a pergunta desconcertante que meu companheiro havia causado constrangimento, fiz uma despedida forçada e saímos à francesa. Fomos direto à residência do Raimundo Conceição, o “Cônsul”. É lá que é fabricado o Judas, um boneco em tamanho natural, que representa, enfim, a malhação de Judas, que não é feita no Sábado de Aleluia, como acontece tradicionalmente.
“Olha só, nosso repórter das coisas de Mazagão, enfim, veio acompanhar a fabricação do boneco. Nem acredito. Vai lá, no quintal, que está tudo lá, e leva teu companheiro. Se quiser molhar a palavra, tem uma variedade lá, mas não vá se estragar para mais tarde”, disse o anfitrião. O Matsunaga, meu fotógrafo, puxa meu braço e me pergunta: “Que porra é ‘molhar a palavra’?”. Expliquei para ele que em Mazagão Velho, há alguns termos para ingerir bebida alcoólica, como “molhar a palavra”, “sangrar o galo”, “dar uma chamada”, “acender a lamparina”, “alertar as ideias”, “puxar uma rama...”.
No fundo do quintal, um grupo se esmerava para finalizar o boneco. À noite, esse mesmo pessoal vai se revezar para carregar a “obra de arte” no barraco, durante o Baile de Máscaras. E o Judas, neste ano, prestava uma homenagem ao Tufão, personagem de sucesso interpretado pelo ator Murilo Benício, na novela “Avenida Brasil”. “Não vão ficar com a má sorte do Tufão, com a cabeça toda enfeitada”, brinquei com um deles, que conheço desde criança. “Não, que nada! A minha Carminha é fiel, não é igual à da novela”, retrucou Alan Nonato, um dos que trabalhava no boneco, que tinha uma namorada chama Carmem. Só uma coincidência!
Num casebre no fundo do quintal, numa mesinha de madeira, o banquete: charque assado, farinha de mandioca torradinha e, claro, a tradicional batida de gengibre, a “gengibirra”, bem geladinha, irresistível. O Junior, o “Molecão”, fez a clássica intimação. “Sim, meu primo, vocês não vão molhar a palavra, vão fazer essa desfeita com a gente?”. O japonês me olhou com uma cara de susto, pois não bebe. Respondi: “Vamos, mas o japa aí vai só provar, pois não bebe álcool”. Peguei o copo na frente, para tentar animar o Matsunaga. Dei uma virada no copo – gengibirra deliciosa, por sinal. O japonês deu aquele sorriso amarelo (como ele), virou o copo e até gostou, pois tomou um gole generoso. Só que o oriental começou a mudar de cor, de amarelo para vermelho, já que a gengibirra aumenta a pressão e naquele dia ainda fazia um calor de rachar.
Já teve mulher na festa, sim!
“Vamos para a base”, convidei o Japa. No caminho para a casa onde estávamos hospedados, ele volta a inquirir: “Mas não pode ir mulher na festa mesmo?”. “Elas não podem dançar o baile, mas ficam olhando do lado de fora do barraco, onde a festa acontece”. Já na casa de dona Joaquina Jacarandá, a dona “Joca”, uma senhora de 60 anos, ela nos explica que no dia do Baile de Máscaras, a tradição manda que não seja feita nenhuma outra festa. “Teve uma vez, há muito tempo, que uma família que foi realizar uma festa de aniversário no dia do Baile de Máscaras. Aí, os mascarados invadiram a acabaram com a festa, deu muita confusão. Mas, desde então, a noite de 24 de julho é só dos máscaras”, relata.
A história da mulher não participar da festa ficou remoendo na cabeça do fotógrafo japona. Depois de um café da tarde, com direito a café com leite, pão com queijo e presunto e um beiju fresquinho, fomos sentar em uma das cadeiras, enfileiradas no pátio. Lá, estava o dono da casa, o marido de dona Joca, seu José da Conceição, ou seu “Zé  Cardinho”. Um senhor respeitável, já de cabelos grisalhos, denunciando seus mais de 60 anos de idade. O Matsunaga dispara de primeira: “Seu Zé, nunca nenhuma mulher tentou brincar no Baile de Máscaras?”. Seu Zé deu aquela risada sarcástica, com um ar de lembrança. Para que o japa enfim esquecesse do assunto, pedi: “Comandante Zé, conte ao meu amigo japonês a história da Fátima!”.
Seu José começa a lembrar: “Certa vez, a Fátima Aleluia, uma amiga nossa, tomou umas violentas no dia do Baile de Máscaras. Resolveu se fantasiar e ir à festa. Como a fantasia estava bem feita, calças de homem, botas, mangas cumpridas e máscara, ninguém desconfiou. Mas, foi na hora de urinar, no alojamento, que foi descoberta. Foi expulsa da festa a pontapés pelo João Pedro, já falecido. Foi repreendida pela comunidade e até pelo padre. Dizem que foi a partir daí, que nenhuma outra mulher tentou brincar o baile”, lembrou seu Zé Cardinho.
À noite, por volta de meia-noite, fomos fotografar o baile. Ainda tenho a capacidade de ficar encantando com aquelas fantasias, apesar de conhecer a festa desde criança. Muita música, bebida e animação, para aguentar até o sol raiar. Claro, muitos cliques do Matsunaga, também. E o tempo foi passando, deu três da matina e tínhamos que nos retirar, pois cedo ainda teríamos que registrar a missa campal e o círio, logo pela manhã.
Antes de irmos, fizemos questão de visitar o alojamento dos máscaras, o que nos foi concedido apenas com a câmera fotográfica desligada. Ao entramos, alguns já estavam dormindo embriagados, para acordar dali a alguns minutos e voltar para o barraco. Mas a cena que nos chamou a atenção: a roupa do boneco do Judas estava sendo trocada e ele estava com uma calcinha vermelha de renda... Pode, Freud?