Por Paulino Barbosa
(aluno do curso de Jornalismo da UNIFAP)
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a
vida, sempre passamos por alguns “mal bocados”. E quem é jornalista sabe muito
bem do que falo. Situações que testam o nosso limite físico e psicológico.
Aventuras que nos colocam entre a vida e a morte. São desafios constantes para
quem um dia ousou escolher essa profissão. Mas, se não fosse assim, que graça
teria o nosso trabalho? E depois, como diz o ditado, uma pessoa só “bate as
botas” quando chega a sua hora. E este repórter é a prova disso.
Era
mais uma pescaria na vida daqueles três “peões do mar”. O cabeludo, o Camisudo
e o Seu Mané. Sei que é engraçado, mas esses não são os seus nomes verdadeiros.
Mas também não faz muita diferença eu citá-los aqui, quase ninguém sabe. O
cabeludo, o mais vivido e esperto da turma era o líder e mentor da viagem.
Ganhou este apelido ainda guri porque tinha uma cabeleireira farta. O Camisudo tem a mania de usar a camisa por
fora da calça quando está porre, daí o seu apelido. Já o Seu Mané, tem este
segundo nome por conta da sua lentidão e distração. E eu, bem eu não tenho
apelido, não que eu saiba, mas estava ali, como um abutre farejando carniça,
querendo uma boa história para contar. E aquela aventura poderia ser a pauta
certa que eu tanto procurava. Não pensei duas vezes, entrei no barco e saímos.
Nosso destino, as costas do Bailique. Eu tinha que passar cinco dias com
aqueles caboclos, no meio do Oceano Atlântico, vivendo literalmente uma vida de
pescador.
Nem
bem saímos da calmaria dos rios, demos de cara com uma grande tempestade. Algo
fora do comum, um verdadeiro inferno. Coisas da natureza que não podemos
impedir, apenas enfrentar e tentar sobreviver. A tempestade veio carregada de
vento e chuva fortes. Uma escuridão apagou o dia, não enxergávamos quase nada à
nossa volta. Estávamos literalmente e realmente nas trevas! O nosso barco, como
um barquinho de papel, daqueles que brincamos quando criança, submergia quase
por completo nos meios das ondas gigantescas. Era preciso muita força nos
braços para nos manter agarrados no barco. A chuva arremessava aqueles jatos de
água parecendo pedras sendo atiradas contra o nosso rosto. Eu não conseguia
abrir sequer os olhos para olhar o que estava acontecendo. As ondas surgiam de
repente à nossa frente e levantavam o nosso barco por cerca de três metros de
altura que depois se chocava contra a água do mar. O impacto era tão forte que
parecia que tudo ia se arrebentar dentro da gente. Ainda bem que ninguém estava
com diarreia. A única coisa que eu conseguia dizer era “ai meu deus!”. Essa é a
hora que todo mundo se lembra dele. E naquelas circunstâncias só um milagre
poderia nos tirar daquele inferno. Tive vontade de gritar pela minha mãe.
Pensei
em pular na água e abandonar o barco, mas não conseguia enxergar a margem.
Comecei a rezar e a fazer promessas pra todos os santos que conheço. Acho que
até agora ainda estou em débito com algum. Ficamos nessa situação por cerca de
uma hora, o barco não andava nada, pois a força da maresia nos impedia de
avançar. Ficava imaginando “... se der um problema no motor ou na direção
estaremos fudidos”.
Passado
aquele sufoco, o vento foi se acalmando e a paisagem à nossa volta foi
clareando. Estávamos livres! Tentei soltar meus dedos da vista do barco, mas
não conseguia. Estavam duros. Só depois de alguns minutos consegui
movimentá-los e trazer os meus dedos de volta. A força que fiz para me manter
dentro do barco fez com que o sangue parasse de circular. Por pouco não perdi
meus dedos.
Depois
da tempestade, o Cabeludo me falava que eu estava batizado pelo mar e que então
poderia ser um pescador também. Me benzi e bati na madeira.Tomara que eu nunca
precise dessa porra de profissão para sobreviver. Aquilo não é vida para um cidadão normal, como
eu. Ele disse que esse momento, pelo qual passamos, é rotina na vida de um
pescador. Para os novatos, era um teste de resistência e de adaptação. Ou seja,
é o momento de separar os adultos das crianças. Ele diz que muitas pessoas passam
mal e até se cagam, tanto por cima quanto por baixo, por causa do medo. Ainda
bem que não aconteceu isso comigo. Mas também, se tivesse acontecido, não
relataria aqui. É muita humilhação admitir tal mico! Aí sim eu ganharia um
apelido e uma marca para o resto da vida.
Eu
estava em estado de choque, não conseguia nem falar. Foi preciso algumas horas
para me recuperar. Na verdade acho que até hoje ainda não me recuperei por
completo. Em poucos minutos aquela euforia inicial de aventura se foi. E no seu
lugar ficou o medo, o pesadelo. Não dá para imaginar como é a vida real de um
pescador a não ser que você viva esta realidade. Falo isso porque sou
acostumado a assistir aquela série do Discovery Chanel chamada “Pesca Mortal” e
que, por isso, achava que estava pronto para aquela aventura. Puro engano! A
realidade é bem diferente do que imaginamos.
Já
batizado pelo mar e sobrevivido, continuamos nossa viagem e uma hora depois
estávamos ancorados na Ponta do Bailique, prontos para a pescaria, ou melhor,
quase prontos. Eu só queria voltar pra casa e sentir terra firme nos pés.
Naquele
mar, com o barco jogando o tempo todo, o nosso estômago fica a todo instante
querendo expulsar o rango. Sem contar que nesta situação, comer é uma batalha.
Jogar farinha na boca é quase impossível por causa do vento que leva tudo da
colher. O jeito é recorrer ao pirão. Banheiro e papel higiênico, nem pensar. As
necessidades são feitas ali mesmo, pendurado do lado do barco. E quando você
termina é só se jogar no mar e já vem com o corpo todo lavado.
A
rotina de pescador é muito agitada, bastante sofrida e solitária. Pesca-se o
tempo todo, seja noite ou seja dia, faça chuva ou faça sol. Quase não se tem
tempo para descansar ou pensar em solidão. Os pescadores quase sempre dormem em
cima das estivas de tábuas, comem junto dos peixes.
Na
maré alta, põe-se as redes na água para pescar e quando a água vai secando é
hora de tirar os peixes. Alguns são lavados e vão para as cubas de gelo, outros
são lanhados para serem salgados. Apesar de ser uma das profissões mais antigas
do planeta, muito bem descrita na bíblia, a tecnologia ainda não chegou para
muitos pescadores. Ainda se pesca artesanalmente, usando as mesmas técnicas e
equipamentos do “tempo do cu quadrado”. Para se ter ideia, no nosso barco a
única fonte de energia eram as lanternas. Por isso, nosso jantar tinha que ser
antes do dia escurecer para que nenhuma espinha de peixe ficasse entalada em
nossas gargantas. Num dos raros momentos de descanso, à noite, poderíamos
contemplar as estrelas no céu, contar algumas piadas ou simplesmente jogar
conversa fora. É nessas horas que deve bater a saudade da família, da esposa,
dos filhos. A nossa pescaria era apenas para o nosso consumo e a previsão era
de que ficaríamos por cerca de cinco dias no mar. O Cabeludo nos contou que os
pescadores profissionais chegam a ficar até mês inteiro pescando. Ele disse que
eles pescam a quilômetros da costa, onde só se vê o mar. Fiquei pensando, tanto
tempo no mar, deve ser a explicação para que muitos pescadores tenham filhos
com a cara do vizinho, louros e até de olhos azuis.
Brincadeira
ou verdade, é de se admitir que o pescador fica, a todo momento, exposto à ação
do tempo. Parece mais uma extensão da própria natureza. Nos dias de sol quente,
apenas a roupa, o boné ou o chapéu de palha os protegem. No fim do dia a pele
está queimada e dolorida, os nossos olhos estão que nem pimenta de tão ardidos
por causa da ação do vento.
No
meio da noite é preciso sair para colocar as redes na água. Temos que molhar o “bago”
para fazer esse trabalho. Não podemos amanhecer dormindo, pois temos que
despescar as redes antes que os animais façam isso por nós. Agora entendo
porque os pescadores tem a fama de cachaceiros e tabaqueiros. Não dá para
enfrentar aquela rotina sem umas doses de álcool correndo pelas veias ou sem um
grande “porronca” na boca para assustar os maruins.
O
nosso banho é feito no mar ou quando a água está seca, nas poças que ficam em
cima da praia. A água é tão barrenta que temos a sensação que ao se banhar
ficamos ainda mais sujos. Quando a pele seca é possível escrever um texto com
as unhas.
No
período que compreende os meses de janeiro a abril, muitas espécies de peixes
entram no período de piracema. Nesses meses é proibido pescar. Para sustentar
suas famílias, os pescadores dependem do seguro de pesca pago pelo Governo
Federal. São quatro parcelas no valor de um salário mínimo. É um dos raros
momentos em que eles deixam o mar e rumam para a cidade. São facilmente
encontrados, desde a madrugada, nas famosas filas da Caixa Econômica Federal.
Essa
é a vida de um pescador profissional do Bailique, uma vida sofrida e em
constante briga com o mar. A renda depende muito da sua produção. De toda
forma, nunca conheci nenhum pescador que tenha ficado rico. E quase sempre,
todos que começaram pescando, geralmente morreram pescadores. A vida de
pescador é tão lascada que quase nenhum pescador deseja que seus filhos sigam a
profissão. Portanto, quando você for à feira e reclamar do preço do pescado,
pense no sacrifício que os pescadores enfrentam para trazer o peixe até a sua
mesa. Pode não ser o inferno, mas provavelmente seja a boca dele.
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