quinta-feira, 23 de maio de 2013

Da lixeira da cozinha até a lixeira pública: o caminho que o lixo doméstico percorre até a destinação final


Foto: Gabriel Penha
Jogou alguma coisa no lixo e depois se arrependeu? Não se desespere, objetos jogados no lixo sem querer não estão perdidos para sempre. É possível recuperá-los. Mas para isso é preciso percorrer um longo caminho. 

            Depois de ouvir vários relatos de amigos contando como perderam objetos que foram parar, sem querer, no lixo, e que mesmo tentando não conseguiram recuperá-los, resolvi que isso seria uma boa pauta para fazer uma investigação jornalística. Não sou fã do jornalismo investigativo. Acho-o um risco de vida, embora na profissão de jornalista não se tem muita escolha. Mas avaliei que seguir as pistas dos resíduos sólidos, é assim que o lixo é chamado, não traria nenhum risco. Talvez, o biológico. Então decidi “perder”, por vontade própria, alguns “documentos importantes” e segui-los para verificar qual o caminho que o lixo percorre, desde a lixeira de nossa casa até o seu destino final e se é possível recuperá-lo.
            Na manhã de uma segunda-feira de verão, coloquei alguns papeis e revistas velhas em uma sacola plástica de cor azul, para diferenciar das milhares de sacolas brancas e amarelas, que reaproveitamos para acondicionar o lixo depois que elas embalam nossas compras no supermercado. Saco de lixo pronto, coloquei-o junto com os outros sacos que já estavam na lixeira em forma de jance de carro que fica na calçada, com tampa e em uma altura suficiente para que os cachorros e urubus não espalhem tudo pela rua. E esperei.
Sei que o carro do lixo passa às segundas, quartas e sextas-feiras na rua de casa, sempre pela manhã. Mas não tem um horário certo. O jeito é esperar.
Às sete e meia passou o primeiro gari juntando em um só lugar na rua o lixo de todas as casas. Deve ser para facilitar o trabalho, mas como o carro que recolhe o lixo demora a passar, os cachorros e urubus fazem a festa, espalhando pela rua latas, caixas, restos de comida e outras coisas que eu não quero nem saber o que é. Depois de mais ou menos meia-hora, o carro passou e os garis só levaram o que ficou nos sacos inteiros, deixando pra trás um rastro de sujeira pela rua.
Esperei uns 20 minutos e saí atrás do caminhão do lixo. Iria tentar resgatar os “documentos” que foram parar no lixo por engano, antes de chegar na lixeira pública. Consegui alcançar o veículo bem longe de casa. Como ele é rápido!
Falei com o motorista, contei que tinha colocado uns papeis no lixo por engano e ele me disse que era impossível achar a sacola dentro do depósito do carro. Foi aí que descobri que o mecanismo do caminhão não destrói as embalagens e sim apenas compacta. Não me dei por vencida. Perguntei pra onde ele levava aquele lixo todo. Ele respondeu que ia levar pra Lixeira Pública Municipal.
A Lixeira Pública Municipal fica no km 14 da Rodovia BR 210. Não sabia a que horas o caminhão ia chegar por lá, assim segui para o lugar sem muita pressa de chegar.
Ao chegar à Lixeira fui recebida por um senhor de nome Otávio Moraes, que controla a entrada e a saída de pessoas e veículos. Depois de ouvir a minha história, foi logo me avisando: “Aqui só entra com autorização!” Pedi pelo amor de Deus, de todos os santos e anjos, disse que os papeis eram muito importantes. Enfim, consegui convencê-lo a me deixar entrar. Perguntou-me qual era o número do carro do lixo que passava na minha casa. “Não sei”, respondi. E completei no pensamento: “Eu vou lá me preocupar em saber o número do carro do lixo que passa na rua da minha casa. Eu sei a senha do cartão de crédito, do cartão do banco, do e-mail, enfim, são muitos números para saber de cor, não dá pra decorar mais o do número do carro do lixo”. Ele perguntou então o meu endereço e me informou qual era o número do caminhão.
Entrei na Lixeira Pública. Estacionei o carro e ao longe avistei várias pessoas circulando entre milhares de sacolas de lixo que estavam depositadas em uma área próxima a uma grande cratera. Deduzi que era ali que os carros derramavam o lixo quando chegavam ao local. Fui me aproximando devagar. O lugar tinha tanta mosca que à medida que eu caminhava elas abriam um caminho para eu passar como se fosse uma passarela. E o urubus? Eram tantos e pareciam disputar o lixo com os carapirás.
Esses eram especiais, os carapirás, pessoas simples que passam a vida inteira catando lixo. Criam filhos, sustentam a família, sobrevivem do lixo. E são cheios de histórias pra contar. Conversei com eles e contei-lhes a minha história. Eles me aconselharam a falar com o motorista para que ele espalhasse o lixo em vários lugares e não somente em um lugar formando uma montanha, isso dificultaria localizar a minha sacola azul.
Enquanto esperava o caminhão, comecei a conversar com algumas pessoas. Cleide Souza, de 34 anos, três filhos, vem todos os dias catar lixo na Lixeira Pública.”Aqui nós encontramos de tudo. O material escolar dos meus filhos eu junto aqui. É impressionante como as pessoas jogam fora coisas que ainda dá pra se aproveitar”, diz a carapirá. Seu José Lins de Moura, 77 anos, já perdeu a conta do tempo que cata lixo. “Já encontrei relógios, anel, roupas, sapatos e até dinheiro”, afirma o senhor, com as mãos enrugadas e as costas encurvadas pelo tempo que já passou catando lixo.
Já passava do meio-dia, e o sol estava a pino. Suava por todos os poros e nada do caminhão chegar. Uma senhora que aparentava uns 40 anos, de nome Clarice, veio me convidar para o almoço. “Almoço? Aqui nesse lugar?” Pensei. “Venha comer um peixe com a gente”, chamou a mulher. Não, obrigada. Agradeci. Imagina a higiene daquele local. E ainda mais, peixe é um chamariz de moscas. Definitivamente, não.
Finalmente, o caminhão do lixo que passa na minha rua, o de número 46, chegou. Falei com o motorista, que ficou surpreso de me ver ali. Ele então jogou o lixo espalhando por vários lugares. Os carapirás rapidamente começaram a procurar a sacola azul com meus documentos. Eles estavam tão ávidos em encontrar o meu lixo, que acho que eles estavam desconfiando que não eram bem documentos que eu estava atrás, e sim alguma coisa mais valiosa.
Eram muitas sacolas, caixas, todas sujas e amassadas. Seria difícil de achar. Também comecei a procurar e nada da sacola azul. Alguns carapirás usavam umas varas com prego na ponta para remexer as embalagens. A maioria não usava nenhum tipo de proteção, luvas ou botas. De repente vi um senhor remexendo uma sacola azul e corri até ele. Realmente, reconheci a sacola e peguei-a do chão. Estavam lá todos os papeis e revistas que tinha colocado.
Fiquei surpresa de ter conseguido resgatar os meus documentos. Nem eu mesma acreditava que isso fosse possível. E ainda por cima tive a oportunidade de ver in loco a vida que gira em torno do lixo. E como o ser humano produz lixo. São toneladas e toneladas que são depositadas nas lixeiras públicas, diariamente. É preciso urgente repensar a questão da diminuição do consumo e o aumento da reciclagem, pois na direção que estamos indo, iremos todos parar em uma grande lixeira mundial. 



Por Elisabete Ramos, acadêmica do curso de Jornalismo/Unifap, turma 2011.

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